Querido e detestado diário,
Hoje, fui acordada do meu sono de malvadez pelo maldito toque do maldito telefone.
Atendi.
"Saudações," disse uma voz mecânica. Uma voz que, em tempos, havia tido um tom doce e suave até descobrir as expressões 'máxima eficiência', 'perfeição gramatical' e 'salada de frutas'.
"Tencionava relembrá-la de que os seus progenitores visitá-la-ão hoje, daqui a 50 segundos. 49. 48. Cuidado com o carro, Adalberto."
"Olá, mãe," respondi.
"Boa tarde. 43. Esperamos que, de entre todas as capacidades que lhe transmitimos durante- 40.- o seu crescimento, a pontualidade tenha resistido. 36. 35. 34."
"Maria Genoveva… abraça a bondade universal… e desliga a terceira pessoa," disse uma outra voz, tão devagar quanto um som se consegue atrever.
Desliguei.
Vesti-me, ou seja, coloquei a cartola e o monóculo. A bengala não seria necessária, pensei. A bengala rosnou quando se apercebeu do que eu pensava.
Agarrei na bengala.
Abri a porta. Estavam duas alforrecas de fato e com pastas debaixo do braço.
"Boa tarde, irmã. Nós somos testemunhas de Seilá e vimos espalhar a palavra-"
"3. 2. 1." disse alguém atrás das pobres cnidários, que se viraram artriticamente.
Demasiado tarde.
Cinco segundos depois, um ananás... não, uma ananás, de óculos escuros e vestida muito eficientemente (sem roupa), deu um passo por cima de dois corpos gelatinosos, prostrados no tapete da entrada. No horizonte, atrás dela, enormes nuvens negras formavam-se, relampejando e trovejando, como se dissessem cada vez que chocavam “Com licençaaa”, ou “Peço desculpa!”
Ela. A ananás contabilista mais dura de todas. Eficiente como deixar de respirar e cem vezes mais desagradável. Dura como o mundo, teimosa como um tijolo.
Outro relâmpago, outro trovão.
Maria Genoveva.
"Pfft," tentou a omelete.
"Pfah," respondeu-lhe Genoveva.
"Pfuuiiii."
"Pfh."
"Pfffte!"
"Pfalalalalah."
“BRRUUUMM,” desculpou-se uma nuvem.
“… por… quêe…?” gemeu uma das alforrecas.
"FILHA…!!" gritou o ananás chamado Adalberto, que, saltando por cima das duas trémulas vítimas com a mesma velocidade relativa de um glaciar, abraçou carinhosa e vagarosamente a omelete, chegando pouco depois à conclusão de que não tinha sido uma decisão inteligente.
"Bem, já vi que encontraram o meu novo número, a minha nova casa… ah… e o novo estendal da vizinha com roupa branca a secar" disse a omelete, enquanto o ananás retirava, com um lençol branco, as quantidades monstruosas de gordura que ficaram agarradas à casca.
"Deveras. Não te dês ao trabalho para a próxima, Constância. As mães sabem sempre. Sempre. Sempre.”
“BRRRAARRUUUMMM.”
“Claro que a equipa de abacates espiões tamb-” tentou Adalberto ajudar.
“Não nos vais convidar a entrar?” interrompeu Genoveva, gelidamente.
Constância, a omelete malvada, suspirou.