quinta-feira, 21 de fevereiro de 2008

Prólogo


“Até logo, minha lichia com natas*. O jantar estava formidável, como sempre!” disse Nero, enquanto piscava o olho à sua belíssima mulher, uma égua chinesa com listas que variavam desde o negro ao magenta, para depois acabarem na cauda num azul lunar.
Nunca pensou Nero que estas seriam as últimas palavras que diria à sua belíssima esposa em muito, muito tempo…

Nero era polícia, um Minotauro com 2 metros de altura e corpo de boxeador. De momento, ele patrulhava a estação dos autocarros, bocejando em intervalos cada vez mais curtos. Nada o fazia prever que seria aqui, no sítio do 432, que teria início o seu destino.
Faíscas saltavam de um canto escuro da estação. De repente, os contornos de uma elipse começaram a tomar forma, numa luz multicolor.
“Argh,” exclamou Nero, cego por um súbito clarão de luz.
Abriu os olhos. Para espanto e maravilha dele, perante si estava retratado na parede enegrecida, onde antes se encontrava a elipse, uma paisagem verdejante que emoldurava ao fundo uma colossal cascata.
“Pelo chifre da minha Bisavó, o que é aquilo?” disse Nero com a sua voz grossa e rouca.
Então, tudo acontece. Rajadas vermelhas e negras começam a invadir o ar vindas da paisagem, Nero agacha-se em busca de protecção e subitamente, materializam-se dois vultos.
No meio da noite, ouve-se o choro de um bebé…

terça-feira, 19 de fevereiro de 2008

Diário de uma Omelete Malvada

Sexta-feira, 15 de Fevereiro de 2008


Querido e detestado diário,

O meu dia começou com o tilintar demoníaco do meu despertador da Hello Kitty. Antes de tomar o pequeno-almoço e, aconselhada pela Genoveva, uma prima minha em terceiro grau que adora jogar copas e dizer "CORTEZ LA TÈTE!!", fiz cinco coisas impossíveis das quais, infelizmente, não me lembro. Não me chateies.

Na caneca do meu chá da manhã, reparei no curioso padrão que as folhinhas tomaram, um intricado desenho que prometia um "Eu vou ser uma previsão interessaaanteeee!". Fui buscar o meu manual "Fortune-telling for Dummies" e traduzi:

"Grandes progressos no campo sentimental, principalmente se comunicar com o seu parceiro. Conhecerá o seu arqui-inimigo. Saúde instável, cuidado com o colesterol. A cor de hoje é o verde-fungo. Números do totoloto, use a sua intuição e escolha: 2, pi, 19, 25, 33.33, 42, 43, 44, 45, 0, -4"

Esbocei um sorriso. Esperei muito tempo por este dia, depois de anos e anos de cálculos e previsões, chegou finalmente a altura! O momento! A minha razão de existir! A primeira e última chance de utilizar a combinação pi, 42, 43, 44, 45, 2 e -4 no Euromilhões! Serei rica! RICA!! MUAHAHAHA!!


Dirigi-me à casa-de-banho para me preparar. Aparei o bigode malvado, encurvei as pontas Daliescas, arranjei as sobrancelhas (com cera da Veet) e, por fim, coloquei o monóculo no meu olho esquerdo. Observei-me ao espelho. Perfeita. Coloquei a minha cartola e saí.

Fui para a paragem de autocarros, onde estavam os habituais frequentadores do serviço. Uma hera desdentada, duas contradições existenciais artríticas, cinco coelhos (dois em abstinência sexual - tinham tantos tiques que cada movimento involuntário tinha de ganhar ao pedra-papel-tesoura aos outros para poder aparecer) e três idosos peixes escafandristas.

Passei à frente deles quando o 432 chegou. Tirei um chupa a um repolho de 2 anos e sentei-me nos últimos três assentos livres que restavam, para desânimo geral do gangue do reumático que acabava de entrar. Ahh.


Chegada à baixa cascaense, saí. Empurrei para o lado duas bruxas estrangeiras que, distraídas, tiravam amostras do famoso pilar negro do terminal dos autocarros. Estou perto, estou quase lá.

Entrei na papelaria. Olhei para a fila. Ah, sexta-feira. Saí da papelaria. Fui para o fim da fila, ou seja, à porta do Pingo Azedo. Passar à frente? Há alturas para maldades, mas a fila do euromilhões transcende a existência de Bem e Mal, é algo com que não se deve brincar. Entretanto, ia utilizando o meu tempo livre de uma forma útil: a engordurar permanentemente as pessoas que iam passando.

Cheguei ao fim. Mostrei o meu boletim à alforreca apática que atendia as pessoas. Ela informou-me de que o cliente anterior tinha sido a última pessoa a poder concorrer ao Euromilhões. Inferno! Frigideira!! Quem?? QUEM se atreveria a arrancar-me a minha última possibilidade de ser rica?? O meu bilhete para a América! A operação plástica que me devolveria a bidimensionalidade perdida no óleo de fritar!!

A alforreca apontou debilmente para um vulto que acabava de sair. Eu segui-o determinadamente. Onde? Ah, ali! Tinha uma forma circular, mas não o conseguia vislumbrar decentemente, pois quase desaparecia quando estava em perfil. Continuei a segui-lo até à Poolar Bear. Ele agarrou num par de calças e entrou para uma cabine de provas. Dirigi-me para a cabine ao lado, com a desculpa de ir experimentar um cachecol. Na madeira entre as duas cabines, estava um curioso buraco circular. Espreitei.

Céus. Nada, nada me poderia preparar para o que vi. Um ser da mais perfeita bidimensionalidade. De frente, era um círculo com bico e asas. De lado, era um segmento de recta perfeito. E vestia um 36.

Ao sair da cabine, presenciei tal criatura a emitir um pequeno "uu-huuu" e a entregar as calças à menina da caixa, uma foca valquíria a mascar pastilha. A foca reconheceu-a e agradeceu-lhe ter vindo fazer compras ao seu modesto estabelecimento.

O nome. Ela disse o nome.


É esta improbabilidade da natureza o meu arqui-inimigo. Vejo agora um novo objectivo para a minha gordurosa existência.
A destruição do panqueca-pombo.